segunda-feira, 17 de maio de 2010

Raul Seixas

"Eu sei que determinada rua que eu já passei não tornará a ouvir o som dos meus passos.
Tem uma revista que eu guardo há muitos anos e que nunca mais eu vou abrir. Cada vez que eu me despeço de uma pessoa, pode ser que essa pessoa esteja me vendo pela última vez.
A morte, surda, caminha ao meu lado e eu? Eu já não sei em que esquina ela vai me beijar. Com que rosto ela virá? Será que ela vai deixar eu acabar o que eu tenho que fazer? Ou será que ela vai me pegar no meio do copo de uísque? Na música que eu deixei para compor amanhã? Será que ela vai esperar eu apagar o cigarro no cinzeiro? Virá antes de eu encontrar a mulher, a mulher que me foi destinada e que está em algum lugar me esperando, embora eu ainda não a conheça?
Vou te encontrar vestida de cetim, pois em qualquer lugar esperas só por mim. No teu beijo provar o gosto estranho que eu quero e não desejo, mas tenho que encontrar. Venha, mas demore a chegar. Eu te detesto e amo morte que talvez, seja o segredo desta vida.
Qual será a forma da minha morte? Uma das tantas coisas que eu não escolhi na vida.
Existem tantas... Um acidente de carro, o coração que se recusa a bater no próximo minuto, a anestesia mal aplicada, a vida mal vivida, a ferida mal curada, a dor já envelhecida, o câncer já espalhado e ainda escondido, ou até, quem sabe, um escorregão idiota num dia de sol, a cabeça no meio-fio...
Oh morte, tu que és tão forte, que matas o gato, o rato e o homem. Vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres me buscar! Que meu corpo seja cremado e que minhas cinzas alimentem a erva e que a erva alimente outro homem como eu, porque eu continuarei neste homem, nos meus filhos, na palavra rude que eu disse para alguém que não gostava e até mesmo no uísque que eu não terminei de beber naquela noite..."

canto para a minha morte

domingo, 16 de maio de 2010

e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou


Foi-se a última lembrança viva da minha infância. Foi embora pra bem longe, para nunca mais voltar, para nunca mais ser tocada, para nunca mais ter sua presença sentida. Agora só nos resta a saudade... Saudade de tudo o que um dia foi bom, tudo que um dia foi real. Os latidos, os choros, os gritos, o som das brigas e até mesmo os últimos suspiros que deu até sua alma se desligar completamente de tudo isso que nos cerca. Assustador foi vê-la ir embora aos poucos, com a carinha de quem estava tirando um peso de si mesma, carinha de quem não aguentava mais sofrer. Triste foi ver quem ficou ali, ao seu lado, sozinho, a espera do último olhar. Olhar que vinha de olhos que não viam mais nada, mas sentiam tudo e não aguentavam mais, não queriam mais sentir, mais olhar, mais nada. Foram dez anos, apenas. Para mim, poderia ficar mais dez anos comigo, mais vinte, mais quantos anos quisesse. Mas ela não aguentava mais.
Ela também queria dormir. Dormiu, pra sempre.